Temos, "ainda", um Deus terrível?

       É notória a presença de alguns pensamentos remanescentes da primeira etapa da revelação de Deus no Antigo Testamento na vida dos que nos rodeiam, na Igreja, na pastoral e na conduta dos cristãos, que ainda hoje, insistem em ter uma relação com Deus como “O Deus Terrível”, título que recebeu em um contexto histórico, quero dizer, religioso e cultural completamente distinto do nosso.
       Esse tempo bíblico remonta ao período do Êxodo, de 1250 a 800 a.C., na história do povo de Israel. Pelas narrativas do livro do Gênesis e do Êxodo conhecemos um Deus que não é universal e se manifesta de forma bem concreta; por conseguinte, “O acesso a Deus se dá pelo encontro concreto, na terra em que vive o homem” (livro-base, p. 50). É um Deus terrível e castigador que condena Caim, pelo crime cometido contra seu irmão, a ser expulso do solo fértil e a caminhar errante na terra (cf. Gn 4, 9-12).  No livro do Êxodo, Deus declara a Moisés que o povo é sua propriedade, porque toda a terra é dele (cf. Ex 19, 5).
       Para acentuar a diferença existente entre os homens e Deus, onde este se encontra e tudo o que Ele toca se torna sagrado. Por isso, ressalta Maria Clara Bingemer, é que “O homem se sente pequeno diante do tremendo mistério de Deus. Experimenta liberdade no profano e terror diante do sagrado.” (livro-base, p. 50). Deus santifica Moisés para que ele possa ser o intermediário da aliança que fará com o povo eleito que será, por Ele, santificado: “Vós sereis para mim um reino de sacerdotes e uma nação santa” (Ex 19, 6). O povo sente a presença de Deus pela nuvem escura, pela montanha fumegante e sabe quando Ele fala pelos raios e trovões que caem (cf. Ex 19, 9-19), criando um clima de terror e medo.
       Ainda na narrativa do Êxodo, encontram-se descritos muitos ritos de purificação e santificação de lugares (cf. Ex 19, 12), objetos (cf. Ex 30, 25-30), e pessoas (cf.. Ex 10), a fim de que a separação entre o sagrado e o profano permaneça garantida.
       Os remanescentes dessa primeira etapa, portanto, são quando o rito litúrgico parece estar acima das relações que devem ser estabelecidas entre Deus – Pai amoroso – e os cristãos. Quando é dado valor excessivo aos ritos sacramentais, valorizando a relação exterior, sem uma vinculação de subjetividade, reduzindo o rito a ele mesmo; quando as promessas e as indulgências são realizadas como relações “comerciais”, a fim de barganhar com Deus a salvação; quando se passa a ter uma religião moralista e maniqueísta, que tudo proíbe, mais vinculada à condenação que ao perdão, à salvação. E quando se cria uma dicotomia entre o sacerdócio dos fiéis e o das pessoas consagradas, como se estas fossem mais santas.
       Na segunda etapa da Revelação, que corresponde ao período histórico que vai de 900 a.C. a 630 a.C., Deus ainda não é universal, é o Deus de Israel (cf. Dt 26, 5-7). É o “Deus da Aliança”, mas que ainda não é o único, por isso recrimina Israel como esposa infiel, falando numa linguagem de marido ciumento e ultrajado (cf. Os 2, 4- 15). É um Deus que interpela o coração humano.
       Nesta fase, “Deus dispõe os acontecimentos históricos segundo a conduta moral do povo escolhido” (livro-base 54) e o homem é visto como colaborador de Deus, sujeito aos seus desígnios.
       Como remanescentes entre nós, encontram-se os cristãos fundamentalistas e prosélitos que se julgam escolhidos por Deus para que Ele possa interferir, tendo-os como colaboradores, na história da humanidade; há a visão maniqueísta do mundo com a oposição bem x mal, com julgamentos que desrespeitam, muitas vezes, a liberdade humana; há também os erros históricos da Igreja, como a Inquisição e a aceitação de tortura e de escravidão de povos não cristãos vistas com naturalidade.
        A terceira etapa da Revelação, marcada pelo “Deus Transcendente e Criador”, situa-se em 550 a.C. O poder e a transcendência de Deus, que agora é Deus único para o seu povo, são proclamados pelos profetas. Deus é o criador do céu e da terra e a sua grandeza opõe-se à pequenez das criaturas (Is 40, 12). Ele se universaliza e como Criador – incriado e glorioso – considera o homem como criatura frágil e perversa (cf. Gn 6, 11 e 12); os poderes terrenos se relativizam diante do poder absoluto de Deus (Is 40, 22-23) e o ser humano precisa ser submisso a Deus para não ser exterminado por Ele.
       Não se fala mais o nome de Deus, porque “Ele é o transcendente, misterioso glorioso (livro-base, p. 58). Diante do mistério transcendente de Deus, o homem se entrega a Ele independente de sua conduta (Jo 5, 15-16).
       Remanescentes entre nós, verificamos uma tendência ao dualismo que faz surgir uma religião desvinculada das estruturas sociais, limitada a uma aceitação de que tudo seja vontade de Deus: a existência de ricos e pobres, a piedade individual em detrimento da vida comunitária. O pecado moral é tido como único mal.
       Na quarta etapa da revelação, encontra-se o “Deus justo para além da morte”. A situação de Israel, no período de 177-175 a.C., sob domínio de Alexandre é o momento histórico que abrange a passagem do Antigo para o Novo Testamento.         Deus – que tudo criou – não fez a morte nem tem prazer de destruir os viventes porque a justiça é imortal (cf. Sab 1, 13-5). O mal não triunfará mais. Os justos serão recompensados por Deus na vida eterna e os ímpios, castigados(cf. Sab 3, 1-10).
       Como remanescentes dessa fase entre nós, podemos considerar uma concepção fatalista da vida como destino, provocando a resignação e a submissão dos seres humanos, que veem a sua existência como provação. Para não errar muito e ser, posteriormente julgado com muita severidade por Deus, o homem acaba optando por rigorosos padrões morais de conduta que o levam a se privar de sua liberdade.

Por Daniel G. Ribeiro


Nenhum comentário:

Postar um comentário