Refletindo sobre a correlação: Sagrada Escritura e Tradição da Igreja?

A Sagrada Escritura, por si, já é fruto de uma tradição. Tendo sido compreendida a partir dos homens e estes, através das suas culturas, políticas e economias existentes, a Palavra de Deus vem em resposta às próprias necessidades daquele povo, quer sejam espirituais ou materiais.
Assim, a Sagrada Escritura não é livre, também, de uma tradição, pois foi recebida e compreendida a partir da imagem refletida de uma sociedade carente de respostas. Logo, antes, devemos buscar saber quais eram suas perguntas e o que esperavam receber como respostas.
Dessa forma, entenderemos que, embora a Palavra (resposta) tenha sido concebida de forma livre e dinâmica por ser inspiração de Deus, foi compreendida e traduzida de forma temporal, pragmatizada pelo reflexo dos interesses comuns daquela sociedade, tais como, regras de convívio e de adoração a Deus. Assim, cada manifestação de fé, durante toda nossa história, foi sendo passada de geração em geração e compondo os livros do Antigo e Novo Testamento.
Devemos, também, lembrar que a tradição do povo não é algo pós-Escritura; em verdade, a Palavra de Deus moldou a tradição já existente, passando, assim, a haver, não duas, mas uma só tradição, porém, renovada. Dessa forma notamos a Palavra de Deus, não, apenas, como uma iniciativa divina a fim de dirigir um povo em sua fé e destino, mas como a carência de um povo que clama por Deus, pela sua justiça e liberdade, e que traduz e exprime essas respostas, à sombra da sua compreensão, em sua prática cotidiana.
Em nossa Igreja não foi diferente; os apóstolos transmitiram aos fiéis tudo o que receberam da própria Palavra Viva, sempre os advertindo quanto à prática constituída a partir dela. (cf. 2 Ts. 2,15). Essa transmissão “contribui para a vida santa do Povo de Deus e para o aumento da sua fé; e assim a Igreja, na sua doutrina, vida e culto, perpetua e transmite a todas as gerações tudo aquilo que ela é e tudo quanto acredita” (Dei Verbum).
Percebemos, a partir dos parágrafos anteriores, que a Tradição e a Sagrada Escritura estão profundamente atreladas, sendo uma origem de outra, e vice-versa. A Sagrada Escritura é compreendida pela inspiração, exortação e prática da Palavra de Deus, enquanto a Santa Tradição é a tradução e transmissão dessa Escritura aos sucessores dos Apóstolos, aos quais Deus confiou essa missão, dando a estes a luz do Espírito.  Contudo, não podemos esquecer, nem deixar de advertir aos fiéis que a Escritura Sagrada jamais poderá ser substituída, anulada ou desqualificada por qualquer tradição.
Mas como poderemos identificar essas situações se a Própria Palavra de Deus é fruto, também, de uma tradição?  Devemos, primeiramente, enquanto cristãos, crer que o magistério da Igreja não está acima da Palavra de Deus, mas sim ao seu serviço, e que Jesus Cristo é a única fonte fidedigna capaz de nos revelar e identificar o que é, inicialmente, a Palavra de Deus. Esta passagem do Novo Testamento encontrada no Evangelho de Marcos (Mc 7, 1-13) nos ajudará a compor este ponto.
Os fariseus e alguns dos escribas vindos de Jerusalém tinham se reunido em torno Dele e perceberam que alguns dos seus discípulos comiam o pão com as mãos impuras, isto é, sem as lavar. (Com efeito, os fariseus e todos os judeus, apegando-se à tradição dos antigos, não comem sem lavar cuidadosamente as mãos; e, quando voltam do mercado, não comem sem ter feito abluções. E há muitos outros costumes que observam por tradição, como lavar os copos, os jarros e os pratos de metal.) Os fariseus e os escribas perguntaram-lhe: “Por que não andam os teus discípulos conforme a tradição dos antigos, mas comem o pão com as mãos impuras?” Jesus disse-lhes: “Isaías com muita razão profetizou de vós, hipócritas, quando escreveu: ‘Este povo honra-me com os lábios, mas o seu coração está longe de mim. Em vão, pois, me cultuam, porque ensinam doutrinas e preceitos humanos’. Deixando o mandamento de Deus, vos apegais à tradição dos homens.” E Jesus acrescentou: “Na realidade, invalidais o mandamento de Deus para estabelecer a vossa tradição. Pois Moisés disse: ‘Honra teu pai e tua mãe’. E ainda: ‘Todo aquele que amaldiçoar pai ou mãe seja morto’. Vós, porém, dizeis: ‘Se alguém disser ao pai ou à mãe: Qualquer coisa que de minha parte te pudesse ser útil é Corbã, isto é, oferta a Deus.’ E já não lhe deixais fazer coisa alguma a favor de seu pai ou de sua mãe, anulando a palavra de Deus por vossa tradição que vós vos transmitistes. E fazeis ainda muitas coisas semelhantes” (Mc 7, 1-13).
Hoje, nós, como Igreja e cumpridores das promessas de Cristo, deveríamos, principalmente em nossa catequese, repensar essa correlação: Sagrada Escritura e Tradição. Será que estamos seguindo Jesus, ou seja, fazendo cumprir o Verdadeiro Evangelho, ou cometendo o erro dos antigos, honrando a Deus com os lábios e ensinando, em grande parte, apenas, preceitos humanos? (Mc 7, 1-13). Deveríamos questionar, de tempos em tempos, as nossas tradições a fim de percebermos o quanto, estas já se afastaram da Palavra Inicial, ensinado aos novos fiéis ter um perfil questionador; adverti-los de que, se por um lado a tradição é de suma importância por nos assegurar a memória da nossa história de fé, por outro, quando não questionada, torna-se, com o tempo, algoz da própria Palavra.
Correlacionando Sagrada Escritura e Tradição da Igreja, podemos, ainda, perceber que, independente da Escritura Sagrada ter sido orada e escrita a partir da inspiração divina, toda a tradição que se molda a partir dela, em sua maioria, favoreceu a um determinado grupo ou sistema, e que nós homens, à exceção dos “santos profetas”, acabamos por nos acomodar diante das suas diretrizes, concordando ao invés de questionar as suas "eficiências".
Como pedras da Igreja de Cristo deveríamos, assim como Jesus e os santos profetas, questionarmos mais a tradição, termos fé e coragem suficiente para sairmos da nossa zona de conforto e sermos “cutucadores”, profetas do povo; sabendo que a Palavra de Deus é dinâmica e que, por isso, a prática do Verdadeiro Evangelho torna-se uma tarefa ousada; sendo questionadora da própria tradição, assim como pai de família que tira de seu tesouro, coisas novas e velhas e um pescador que lança a sua rede e que, ao vê-la repleta, arrasta-a para a praia, senta-se e separa nos cestos o que é bom e joga fora o que não presta (cf Mt. 13, 47 - 48).
Devemos pensar, como Igreja, em Jesus, lembrando-nos o homem questionador que foi. Cristo questionou a sua própria vida, suas atitudes (Mc 7, 24 - 30); repensou, libertou-se, e inconformado com os rumos da humanidade e, em particular, da sua religião, ampliou sua razão de existir rompendo com a própria tradição; elogiou a fé do centurião, a ação dos samaritanos, a humildade da mulher sírio-fenícia, sentou-se com publicanos e cobradores de impostos, curou em dia de sábado etc. Cristo aos olhos da Lei foi um transgressor mas, aos olhos de Deus, uma grande esperança.
Como devemos ser por Cristo, diante dessa correlação Sagrada Escritura e Tradição da Igreja? Hoje, olhando para Jesus e fazendo esta pergunta diante de tudo o que observamos na complexidade da Sua existência, percebemos uma resposta simples e profunda. Ele nos diz: Questione a Igreja e as suas tradições, questione a mim e ao meu pai e a todos os santos anjos do céu; questione o porquê de você existir, os seus pensamentos e as suas ações, questione o sentido da vida, da justiça e da liberdade. Assim, através desses questionamentos, o Espírito o fará conhecedor, através da sabedoria e do poder de discernimento, da Minha Verdadeira Vontade, Tradição e Igreja.

Por Daniel G. Ribeiro.

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Um comentário:

  1. Desde o início dos tempos, o homem foi avançando em seus conhecimentos e descobertas, por ser um ser questionador (A miséria no mundo e as guerras de hoje me impedem de escrever "o homem foi evoluindo"). Questionemos, portanto, sempre à luz do Espírito, de forma orante, para que possamos nos libertar de falsas convicções.

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