Para compreender o sentido da morte corporal, se faz necessário, antes, compreender qual é o sentido da vida corporal. Esta citação encontrada no livro do Gênesis capítulo 3, versículo 19, “tu és pó e ao pó voltarás” nos remete, primeiramente, a entender que, se é aqui, na terra, o local da experiência de Deus, então, esta experiência tem começo e fim, como nos é dito em Eclesiástico:
Da terra o Senhor formou o homem, e para ela o faz voltar. Aos homens concedeu dias contados e tempo medido. Ele disse-lhes: “Precavei-vos de toda injustiça”; e a cada um deu mandamentos em relação ao próximo (Eclo 17,1-2.14).
A morte corporal não interrompe, a princípio, a eternidade, ou seja, a verdadeira vida, mas impõe um limite, um fim nesta experiência de Deus. Um dos pecados prosaicos, principalmente nos dias de hoje, são os das pessoas que vivem como se não fossem morrer, como se fossem donas da vida e da morte, do certo e do errado; como deuses (Gn 3, 5). Nesta vida, porém, está o “olhar de Deus” sobre nós, por isso, é fácil compreender que a experiência de finitude se tornou mais rigorosa por sermos nós conhecedores do bem e do mal, ou seja, seres livres não só para escolher nossos destinos, mas o destino dos outros.
E ordenou o SENHOR Deus ao homem, dizendo: De toda a árvore do jardim comerás livremente, mas da árvore do conhecimento do bem e do mal, dela não comerás; porque no dia em que dela comeres, certamente morrerás. (Gn 2, 16 – 17)
Somos feitos do pó e do “sopro da vida”. O Gênesis nos fala, essa afirmativa, que o homem é parte integrante da terra (um ser biológico) e parte integrante do céu (um ser divino). A criação do homem propõe uma dialética, ou seja, que a carne conviva em juízo com o espírito (Cf. Mt 26, 41); nisto se dá a santidade. Temos, então, como princípio da criação, a fragilidade de um vaso de barro e a eternidade divina. Por isso, a morte prevalece cada vez que abrimos mão da nossa essência divina, ou seja, a razão, em favor da carne, neste caso, nossa animalidade (Jd 1, 10).
As árvores do Éden são os caminhos que, segundo Deuteronômio capítulo 19, versículo 31, Deus nos apresenta. Logo, cada um de nós é um Adão, ou seja, uma vida em prova. Como Adão, estamos a cada momento diante desta opção, seguirmos a sabedoria de Deus, cumprindo sua aliança, ou negando-a. Mesmo sabendo que “É a árvore da vida quem escolheu a sabedoria” (Pr 3,18), o homem optou pela árvore do conhecimento, ou seja, por se tornar “autossuficiente”. Assim, Deus se apresentou e disse: “Já que o homem, agora, é como um de nós, conhecedor do bem e do mal, é vetado a ele o fruto da árvore da vida; e que ele busque a eternidade através do seu juízo” (Cf. Gn 3, 22).
Podemos, então, entender como a primeira aliança com Deus foi rompida, ou seja, como ocorreu nossa primeira morte. A Visão do paraíso, por esse prisma, soa, não como uma lembrança de um passado feliz, mas sim, com a esperança de um futuro melhor, um desejo de que o homem, enfim, “escolha, pois, a vida” (Dt 30,19).
A partir dessa compreensão percebemos que a morte citada no texto tem dois grandes aspectos dentro do mesmo contexto. Deus nos avisa sobre a quebra da aliança, e nos mostra que temos um período delimitado para refazermos esta. Para isso, se faz necessário nascer de novo fazendo uma nova aliança com Deus (Jo 3, 3).
Outro aspecto a ser abordado é a mentalidade do povo hebreu em relação à vida corporal e a valorização da longevidade, visto que a vida no deserto era desafiadora. A morte corporal sempre foi uma presente ameaça àquele povo; não diferentemente ocorre nos dias de hoje, em nossa sociedade, que atravessa este mesmo trauma. Pedimos a Deus proteção sempre, já que queremos conservar nossa vida corporal. Se pedíssemos a Deus sabedoria, com a mesma quantidade de vezes que pedimos longevidade, o mundo, certamente, estaria melhor.
O livro da sabedoria capítulo 4, versículo 7, já é uma revisão desse nosso apelo à vida corporal; e quando lido de forma fundamentalista soa como um texto de consolo. Mas, na verdade, apresenta, majestosamente, o sentido da morte corporal. Diz, “a Sabedoria”:
Quanto ao justo, mesmo que morra antes da idade, gozará de repouso. A honra da velhice não provém de uma longa vida, e não se mede pelo número dos anos. Mas é a sabedoria que faz as vezes dos cabelos brancos; é uma vida pura que se tem em conta de velhice. Ele agradou a Deus e foi por ele amado, assim (Deus) o transferiu do meio dos pecadores onde vivia. Foi arrebatado para que a malícia lhe não corrompesse o sentimento, nem a astúcia lhe pervertesse a alma. Porque a fascinação do vício atira um véu sobre a beleza moral, e o movimento das paixões mina uma alma ingênua. Tendo chegado rapidamente ao termo, percorreu uma longa carreira. Sua alma era agradável ao Senhor, e é por isso que ele o retirou depressa do meio da perversidade (Sb 4, 7).
Nesta visão renovada, observamos que a morte corporal, para o justo, é o sinal da misericórdia de Deus. Contrapondo a visão antiga, a morte do justo, na verdade, condena os incrédulos que sobrevivem em sua “longevidade pecadora”.
Em Gênesis capítulo 2, versículo 17, a morte como punição, aos olhos de Deus, é sobreviver em uma sociedade desigual, degradada, injusta, por estarmos sob jugo do homem e da sua liberdade irracional, onde a vida corporal se torna sofrida e frágil, estando a mesma em risco desde sua concepção; ao contrário da morte (social - espiritual), a morte corporal não é vista como uma punição, mas sim, como um aviso, que trata o fim da nossa experiência terrena com Deus, onde o pó volta para terra e o espírito volta pra Deus (Ecl 12, 7), ou seja, o fim do tempo das possibilidades, pois foi na terra que Deus nos propôs sua aliança.
Por Daniel G. Ribeiro
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